Crónicas de Jorge C Ferreira | Noites

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Noites

A noite perdida. A noite desencontrada. A falsa noite. O erro nos cálculos da vida. Um calor que nos engana. Os candeeiros apagados. Uma rua sem luz. O desabrigo. A falta que o que falta nos faz. A dor que falece. Outra vida que aparece. Os viadutos da desgraça. A velocidade incontrolada. Uma pressa para o nada.

Ter olhos para a noite. Conhecer as sombras e as esquinas. De repente, uma navalha que se incendeia num corpo. O tempo de todos os crimes. A sirene das ambulâncias. As urgências dos hospitais. O corte e cose, a veia a receber venenos, o oxigénio e meia dúzia de comprimidos. O internamento. O estado reservado. Uma mulher que chora a desgraça. Um triste fim de noite.

Os pássaros dormem nas árvores grandes. Há quem procure um sítio onde possa beber mais um copo. Há sempre um resto de noite aberto para matar tristezas. Há sempre tempo para mais uma bebida. Há sempre alguém pronto para conversar. O que nos custa ver a noite passar. Não ser capaz de encarar a claridade.

Fechar tudo. Não suportar nem uma frincha que deixe passar um fio de luz. Tudo negro. Tudo noite de novo. Uma venda nos olhos. O corpo nu. Os lençóis negros. Tentar dormir e não ser capaz. Continuar a viver a noite de outro modo. Permanecer quieto e esperar que alguém lhe venha embalar a vida. Noite sobre noite até ser noite.

Acordar para a noite seguinte. Um dado esquinado. O transformista do andar ao lado continua a fazer a maquilhagem. O espelho vai devolvendo imagens que vão mudando o sentir. Cada imagem um fotograma. Fotograma a fotograma vai-se montando o filme. Uma música nostálgica para banda sonora. Uma música de inventar vidas. Muitas outras noites se preparam sem qualquer toque de requinte. Sem cores, sem pérolas, nem lantejoulas. Apenas um canto despido, um desvão de nada, um chão.

Os Casinos abrem cada vez mais cedo. Nos casinos é sempre noite. Tudo está feito para que assim pareça. O chão, o tecto, as paredes, as luzes. Mesmo assim há gente que entra de óculos escuros. Outra noite dentro da noite. Os números sagrados, os números cabalísticos. A roleta num frenesim. O vermelho e negro. As moedas a caírem nos tabuleiros das malditas máquinas que comem e cospem moedas. A noite a avançar. A banca que ganha sempre.

Uma sala coberta de quadros. Numa parede estantes de livros especiais. Numa esquina um sofá, um candeeiro de pé que emite uma luz com um foco dirigido. Sentado no sofá alguém lê um livro. Não está só. Está com toda a gente que aquele livro contém. Faz o percurso que aquela leitura o incita a fazer. Sabe que será outro após ler a palavra FIM. Assim passa a noite. Uma cavalgada de letras, sinais e pausas. Assim inventa tempos e desejos. Não sabemos se aquele vai ser um dos seus livros de cabeceira. Só aquela pessoa saberá quando a manhã irá chegar.

Escreve de pé. Uma mesa grande e alta. O papel liso e o papel amarrotado. Um poema por acabar. O poema que nunca acaba. Falta uma palavra. A tal palavra. A palavra que, muitas vezes, surge por artes desconhecidas. Assim vai noite dentro. Até que a palavra surja. Até que o poema seja realidade ou não.

«Tu e as noites. Sempre gostaste de vadiar!»

Fala de Isaurinda.

«Já lá vai o tempo. Sabes bem que agora não é assim.»

Respondo.

«Olha que por vezes ainda te deitas bem tarde.»

De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Outubro/2018(186)  

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18 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Noites”

  1. Madalena Pereira

    Ai as noites! São um tormento quando falta o sono. Longas demais! Obrigada, querido amigo, por este sensível e delicado texto. Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. O sono que não chega. A cavalgada da mente. Abraço

  2. Mfernanda c m aires Gonçalves

    Ainda nao acertei a hora e fujo da gaiola.instalo me num jardim que é de todos e vejo as árvores a dançarem para mim.As aves de Belo fugiram para países pobres. Pedi que me levassem e não me ouviram.Agora mesmo vi um brilho no céu que hoje não é azul.O branco de neve de uma nuvem que anuncia H2O espreita na janela dum plátano e os cedros estão agora a receber rega automatica gratuita.Logo no escuro volta redondamente a escuridão.
    Abraços.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Tão belo o que escreveste. É para receber comentários como os teus que apetece escrever. Abraço.

  3. isabel

    Bom dia 🙂 🙂 🙂

    De repente lembrei de te perguntar pela viagem da Isaurinda à sua terra …

    Assim se faz o poema e nele tudo se entrega!!!
    Assim … um caminho ao viés … ou não.

    Beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Essa viagem está a ser pensada. Esperamos que seja uma festa. Que seja o dia de todas as noites. Abraço

      1. isabel

        ahhhhhhhhhhhhhhhh … o dia de todas as noites!!! Lindo!!!

        1. Jorge C Ferreira

          Obrigado Isabel. Abraço

  4. Branca Maria Ruas

    Tantas noites em cada noite…
    A tua escrita ilumina todas as noites.
    Obrigada por essa luz!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Obrigado por tudo. És uma amiga generosa. Sabes do que falas. Abraço.

  5. Cristina Ferreira

    Querido Jorge, uma inquietação que inicialmente tomou conta de mim ao ler a tua crónica, acabou por dar lugar a um sereno sorriso. É esta magia que tu tão sabiamente sabes oferecer que nos encanta. A tua arte de tocar nos mais doridos e sensíveis temas , com uma delicadeza e doçura tão tuas, tão únicas.
    “Tu e as noite” – Noite bonita, poeta!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Vamos correndo as noites com a ponta dos dedos. Vamos adoçando as navalhas. Abraço

  6. Regina Conde

    Quantas noites, quantas pessoas diferentes cabem neste magnífico texto. Noites que não quero. Algumas já vivi, assistindo. As noites que são insónias, desdobram-nos à exaustão. As personagens do livro por companhia até que chega a luz do dia e o sono. Por vezes andamos mesmo ao contrário. Um abraço grande Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. As várias faces da noite. As inteiras e as interrompidas. Que bem lês. Abraço

  7. Ivone Teles

    Jorge, meu amigo/ irmão, a nossa/tua/ de tantos, as noites são momentos difíceis de ultrapassar quando o sono falha. Procurar o sono por outros locais de dor. A frustração. Procurar na leitura, imagens e narrativas para que o sonho chegue. Procurar noutras vidas a luz de que se necessita, procurar uma luz de presença como uma criança que tem medo. Havia uma canção que lembro, mas já não se quem cantava. ” Noite/ companheira dos meus dias………..” As noites de quem tem abrigo, mas está só. Perto, os chamados ” sem abrigo “, porque o não têm de facto, mas com os seus cães e outros companheiros aquecem a alma e o corpo num copo de vinho e nas sopas que lhes distribuem. E os corpos aquecem outros corpos. O frio um inimigo a combater.Noites………

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. A espera da noite seguinte. O desespero. A nocturna maneira de viver. O bom que é ler os teus comentários. Abraço

  8. Célia M Cavaco

    É pela noite escura que tudo acontece,o imprevisto da noite tem caminhos sinuosos.
    É pela calada da noite que muita tinta escorre num qualquer papel branco,escrevinham-se amores,paixões,e,muitas vezes ouve-se rir na janela da frente.Nas traseiras da noite há colchão de jornal ou um amargo de lágrimas onde deveria haver estrelas no céu…
    Obrigada,amigo Jorge,mais um texto onde a escrita no preenche.Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Amiga sempre presente, sempre atenta. Os comentários que apetecem. Abraço

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